DIA MUNDIAL DA LÍNGUA PORTUGUESA - 5 DE MAIO
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A NOSSA PÁTRIA NA MALÁSIA
Quanto a mim, descobri-me cidadão desta nossa língua - vasto território de afetos, valores e memórias -, ao cair de uma tarde já distante, na fronteira entre Singapura e a Malásia. Lembro-me que era uma sexta feira porque a estrada estava cheia de autocarros. O motorista explicou-me, num inglês tumultuado, que às sexta feiras os malaios imigrados em Singapura, onde ganham quatro vezes mais, regressam à pátria para passar o fim de semana com a família. Aos gritos, sempre aos gritos, mostrou-me a fila compacta de autocarros, e depois a desordem de feira dentro do nosso próprio veículo, e a multidão, ao longo da estrada, carregando às costas a opulência de Singapura.
Atordoado pelo calor, o alarido, a estupenda fragrância que se desprendia de um cesto de mangas, mesmo atrás de mim, não percebi que já tínhamos chegado à fronteira. O motorista sacudiu-me do torpor gritando instruções em malaio, e a seguir em inglês, mas ao princípio não percebi a diferença. Compreendi finalmente, quando os outros passageiros começaram a sair, que também eu devia saltar do autocarro, com os meus documentos, e passar a fronteira a pé. Não havia fila no portão destinado aos estrangeiros. O guarda lançou um olhar distraído para a minha fotografia, sorriu, e carimbou o passaporte. Agradeci, guardei-o no bolso, e dirigi-me para um bloco de pequenos restaurantes improvisados, disposto a comprar alguma coisa para comer antes de reentrar no autocarro.
O autocarro? Deus, onde estava o autocarro?!
Eram centenas ali e na escuridão todos me pareciam iguais. Tentei lembrar-me do rosto do meu vizinho. Tentei lembrar-me de algum outro passageiro. Todos me pareciam iguais. Sentei-me numa mesa ao ar livre, num dos restaurantes, e só então me dei conta, assustado, quase em pânico, de que estava sem dinheiro. Comigo tinha apenas o passaporte, de cidadão português, e um bloco de apontamentos. Deixara a carteira no autocarro, dentro da mochila, junto com os restantes documentos. Por instantes imaginei o meu destino: ficaria ali naquele fim de mundo, mendigando umas moedas aos viajantes para comer um pratinho de arroz. Finalmente, já desesperado, fui ter com um polícia e expliquei-lhe o que tinha acontecido. Ele olhou-me desconfiado e pediu para ver o passaporte.
- Português? - o homem lançou-se nos meus braços. - Eu também sou português.
Também não era: natural de Malaca, cidade famosa pela sua reputação de remotíssima origem portuguesa, falava uma língua de fantasia, que ao princípio me pareceu crioulo de Cabo Verde, e depois me recordou velhos textos setecentistas.
Acho que o voltei a ver, recentemente, num belíssimo documentário brasileiro sobre o mundo lusófono: "Além-Mar". Estava sentado numa pequena sala de visitas, em casa, no "bairro português" de Malaca. As paredes da sala segregavam uma luz impossível. Ao centro havia uma imagem de Nossa Senhora.
Naquele entardecer, na fronteira ente Singapura e a Malásia, ele foi comigo, de autocarro em autocarro, até que um dos motoristas me reconheceu. O motorista confiou-me a ele num discurso expansivo, inflamado, que eu julgo ter compreendido, mesmo sem entender uma única palavra. Por fim voltou-se para mim e apertou-me a mão.
Não sei se chorei. Não me lembro. Talvez tenha chorado.
José Eduardo Agualusa, A substância do amor e outras crónicas